quinta-feira, abril 16, 2009

Vinte

Por não ter uma opção melhor, eu sorri o sorriso sincero de quem sabia que ela estava errada, mas não tinha tempo, motivo e nem coragem de estragar a infantilidade e a felicidade fácil que ela construíra pra mim nos três minutos em que conversamos, depois de uma hora de estrada do meu lado quando meus únicos interesses eram o sol batendo no meu rosto e o braço do menino do outro lado do corredor. Foi muito mais fácil do que acabar recontando o pedaço da minha vida que não me empolga, que tem mil livros velhos e duas sapatilhas muito mais novas do que eu queria. Olhando pela janela, eu procurava os meus vinte anos que, por mais que parecesse, não estavam ali, estendidos, mortos, atropelados pela rodovia, abertos e espalhados por esse caminho que me forçaram e que não é meu, nunca foi. Com toda a sutileza gentil que ela conseguiu recolher no fim da vida três ou quatro vezes maior que a minha, ela pesou nesse fim de infância que eu prolonguei, como uma avaliação maldosa por sua suavidade, sobre tudo o que eu larguei pra estar nesse lugar que não me completa. Eu sorri de volta porque ela era sorria e era sincera e em três minutos eu soube que ela não teve filhos. Eu acho. Tínhamos algo em comum, fora aquela hora de viagem. Eu sorri de volta porque havíamos nos tornado cúmplices, sem que eu quisesse, e quando ela se despediu, ela me virou os olhos com uma saudade absurda de ser jovem e ter todo o futuro à frente. Eu sorri de volta por não ter coragem de dizer que eu também sorria desse mesmo jeito para os outros. Eu sorri porque não podia gritar. O moço do braço desceu no mesmo lugar que ela. Ele e a amiga. Eu não soube o nome, não conheci o gosto. Eu fechei os olhos com o sol quase chegando no meu rosto e me perguntei sem parar por quê foi que eu sorri de volta. E eu sorri. Pro fingir que estava tudo bem, pra não parar o ônibus, descer na estrada, desaparecer por cinco meses, pra não fazer escândalo, ameaçar desconhecidos, seqüestrar crianças, pra não me sentir velho, amargo e infeliz, pra ter uma história pra escrever agora, quando ela me sorriu perguntando com doçura e com a esperança de quem já perdeu quase tudo exceto as memórias, se eu era jovem e feliz e realizado, eu fui obrigado a sorrir de volta, respondendo, sem vacilar – eu sou! – mas eu não agüentei. Como estávamos parando e ela se erguendo eu sorri com o olhar perdido, procurando o menino do banco do lado, procurando que ele me olhasse, me sorrisse e dissesse “Eu sou” e depois “Sou eu”. Mas ele não olhou. Ele só saiu. Os dois desceram, e quando o caminho continuou eu ainda tinha o sorriso dela, o braço dele e a minha mentira na cabeça. Do meu lado, o braço da poltrona vazia.






Henrique Rochelle Meneghini