Ele tinha muito o quê fazer, mas isso não diferenciava aquele dia de outro qualquer. Subiu as escadas apressado, ao ouvir um grito que quebrava o silêncio daquela tarde. Um primeiro grito direto no chão seco do quintal, e ele apenas entrava no quarto. Outros gritos se seguiram, curtos, imprecisos, alternados. Pesados, caindo sobre o azul da tarde e manchando o chão de tons escuros, os gritos tomaram maior forma, maior sintonia, maior ritmo.
As grandes gotas molhavam tudo em volta, marcando seu território com círculos escuros e escorregadios e, no entanto, deixavam espaços vazios. Negligência ou seleção natural, alguns espaços foram rejeitados. Sentia afeição por esses e os ficava observando, imaginando se teriam a sorte de serem aceitos.
Sociedade exclusiva até com a chuva. Da janela, do seco, intacto e inviolável ele observava. Os olhos trêmulos de apreensão. Cada segundo era único e novo e mágico. E ele perdia muito olhando um só ponto. Queria ver o todo, mas sem perder a parte. Queria acompanhar a gota, sem perder a chuva.
Os gritos pesados se amansaram. As gotas diminuíram, a chuva afinou. Uma orquestra combinava o som dos trovões com a melodia doce do cair transversal da chuva, mas ele, ele continuava intacto e inviolável protegido por pedras erigidas em forma de torre, castelo, igreja ou casa.
Tudo se perdia em meio à água. As cores derretiam, os animais se escondiam. A vida se molhava e se afogava em saudades. Ele se afogaria em saudades também, mas não agora, não tão seco, tão protegido.
Fora descoberto. Apreciar aquela chuva queria dizer muito mais do que observá-la. Precisava participar. Precisava se molhar. Precisava chover. Mas nem lágrimas tinha, não naquela hora. Não com o céu desabando. Era pequeno demais em frente à tempestade calma daquela chuva de verão fora de época...
A própria chuva tomou conta de o molhar. Leves, do céu foram lançados jatos espiralados de vento. Bolas de ar, que se chocavam na sua frente e bagunçavam a imaculada cobertura esbranquiçada que a chuva oferecia ao céu, ainda azul claro ao fundo, e mudavam a direção de algumas gotas, que foram refrescá-lo. Ele não pode evitar sorrir, sentindo o abraço gelado no meio da tarde quente como se fosse daquele alguém que lhe faz falta. Não pode deixar de sorrir e agradecer o cuidado, o carinho. Mas ele não estava lá para ser agradado pela chuva. Estava lá para chover. E um telhado e uns muros atrapalhavam seu banho natural.
Sua fortaleza ofendia a queda d’água. E a água trouxe pedras contra as suas. O baque estridente do contato do granizo com o chão o fascinava. O modo como aquilo caía do céu era por demais misterioso, por demais surpreendente, demasiado surreal. E ele só queria entender. E quem sabe ter a chance de cair daquela janela, se soltar na chuva e chover. Não... aquela chuva não era assim dramática. Era apenas chuva, e isso já seria mais que o suficiente pra ele, se ele apenas pudesse chover também.
As bolas de vento voltaram, decididas a acertá-lo com as pedras da chuva. Das três tentativas, apenas a primeira foi bem sucedida. Ele estava sendo atingido pela chuva. Ele era parte da chuva. E esse pensamento não pode deixar de lhe trazer uma lágrima. Uma lágrima de saudade, de alguém que não podia ver a chuva ao seu lado. Alguém que não o podia abraçar e observar a chuva lhe trouxe toda uma tempestade particular.
Chorava em frente à chuva, novamente fina e gritante. Chorava da janela, do seco, do intacto. Chorava violando o inviolável. Chorava para inundar seu quarto, para inundar sua casa, para inundar a chuva. Chovia com a chuva. Já era parte dela. Ensopado no meio da chuva que o inundava pela janela que ele deixara aberta, ele chovia de saudades.
Ele chovia de saudades por um abraço que não podia imaginar e que não podia receber. Mas estava ensopado, flutuando, chovendo e sabia o que viria a seguir. O vento o soprou. Soprou primeiro brincando, depois planejando. Ele chovia e sua chuva era carregada por bolas de vento que se chocavam na frente de alguém que o queria abraçar, na frente daquele alguém que observava a chuva do meio da rua deserta e distante. Observava, não. Apreciava a chuva. Alguém que como ele, também chovia de saudades. Alguém que, como ele, precisava de um abraço. Alguém que como ele, abraçara a chuva. E a chuva se encarregou de carregar seus abraços, o vento os chocou no meio do caminho e ambos se abraçaram pela chuva.
Parava de chover e ele permaneceu na frente da janela, seco, intacto. Inviolável enquanto sentia o abraço distante que o acompanhara durante toda a chuva. E tudo o que ele pode fazer foi sorrir, por ser amado o suficiente para receber um abraço através da tempestade.
Ele não poderia saber, mas, em uma outra janela distante, aquele alguém recebera o seu abraço e também sorria ao fim da chuva. Assim como tudo devia ser. E foi.